Mostre-me um exemplo TRIBUNA DE URUGUAIANA: Meus oitenta anos, por Gabriel Novis Neves

6 de jul. de 2015

Meus oitenta anos, por Gabriel Novis Neves


Meus oitenta anos 

Consta que a palavra saudade não existe em outros idiomas, apenas na língua portuguesa. 
Do alto dos meus oitenta anos começo a me dar conta que não sinto saudades das situações vividas ao longo desses anos. 
Elas foram digeridas e metabolizadas uma a uma no seu devido momento e as suas decorrências, de tão longínquas, não mais me atingem. 
Dei naqueles momentos o melhor de mim para resolvê-las e, se não o fiz mais adequadamente, é porque realmente não saberia fazê-lo. Portanto, nada de saudades e, muito menos, de lamentações. 
Sinto saudade sim, verdadeira, daquele corpo ágil, daquela intensa força vital que nos rege sem que nos apercebamos, daquela alegria espontânea do viver pelo simples viver, daquele acordar diário em que cabeça corpo e membros trabalham em uníssono. 
Saudade de uma carcaça que se pretendia eterna, sem maiores cogitações sobre a finitude da vida. 
Essa é a grande saudade daqueles que, aquebrantados pelo tempo, mesmo não temendo a morte, não conseguem especular sobre ela. 
Essa precariedade que povoa os idosos é bastante ameaçadora. 
As tentativas de afugentá-la através de plásticas faciais, próteses, malabarismos em academias ou quaisquer outros artifícios, apenas exacerbam essa sensação de insegurança crônica e, portanto, devem ser rejeitadas. 
Considero-as atalhos que não levam a lugar algum ou, quem sabe, levem apenas os alienados e os ingênuos a um número de caminhos ainda mais desérticos. 
O que acredito mesmo é que, na integralidade do meu raciocínio, possa ir desfolhando, uma a uma, as dificuldades pertinentes a essa faixa etária sem que “os fazeres” e “os desfazeres” do passado possam contaminar o meu presente, isto sim, o que tenho de mais importante. 
Chegar aos oitenta anos lúcido e cônscio de suas fragilidades é o maior prêmio que esta viagem chamada vida pode oferecer. 
Felizes daqueles que conseguem entender que nessa fase da vida não mais necessitamos de conceitos e menos ainda de obediência a imposições sociais estabelecidas sem a nossa concordância. 
Aprendemos que as concessões, que tanto nos aprisionaram durante longo tempo, nos parecem ridículas e absolutamente desnecessárias. 
Não mais dependemos do que pensam de nós, e concluímos que essa é a liberdade que passamos a vida buscando. 
Com a percepção da inutilidade das hipocrisias, finalmente nos sentimos verdadeiros e autênticos, frequentemente até incomodativos para os que nos rodeiam - ainda prisioneiros da mentira social. 
Bens materiais já não nos interessam tanto, e até nos divertimos com a fascinação que eles causam aos circunstantes. 
Ter a verdadeira dimensão do que valemos como pessoas, e não simplesmente como heranças ambulantes promissoras, é uma dádiva concedida a uns poucos mais esclarecidos e corajosos. 
Exatamente por essa falta de avaliação sem brilhos e sem paetês, vemos tantos idosos desencantados e deprimidos nesses anos finais de existência. 
Na pujança desses oitenta saudáveis anos tudo passa como um filme meio borrado em que os personagens que por ele desfilaram e continuam desfilando são vistos como experiências únicas e enriquecedoras, livres de mágoas ou de rancores. 
Amar coisas e pessoas cada vez com mais intensidade e compaixão torna a velhice essencialmente doadora e faz dessa viagem aqui na terra uma aventura única.

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