O caixão
A cada seis meses repetia-se o macabro ritual de Camélio tirar o caixão de cima de seu guarda-roupa, colocá-lo na mesa da churrasqueira e ficar por horas lustrando com um trapo encharcado de verniz e Jimo Cupim. Tubos de pasta de dentes esfregados com força nas alças até deixá-las com um brilho de aurora.
- Vejam bem, o dia que eu me deitar aqui dentro, quero estar como uma rainha. A camisola de seda dourada está onde vocês sabem e atraquem sombra verde-músico nos meus olhos. Ao redor de todo o crânico, bastante margarida pra esconder as carapinha que nunca estão bem limpas, não há água que penetre, são impremeáve esses arames. Marina e Corinta queriam ajudar, mas ele não deixava. Ninguém, além dele, e por força das circunstâncias, o carroceiro, que em casos extremos fazia sua mudança, já haviam tocado no aparato que paciente-mente aguardava seu derradeiro mister.
- Acaba logo com isso, Camélio! Se chegar uma visita não tenho explicações razoáveis para tamanho absurdo.
- Dona Marta, tenha dó, que visita? A senhora nem recebe mais visita.
- Sim, e quando recebo tu mandas de volta da porta mentindo que estou em Bariloche ou tocando piano. Como se não soubessem que nunca toquei piano e sequer tenho esse instrumento em casa.
- A senhora deixe isso comigo, eu sei o que faço. Ninguém precisa saber que a senhora tá deste jeito, nesta naba cuiúda e ir pra Bariloche e tocar piano são duas coisas loucas de chique que eu sei.
- Eu não mereço um fim de vida desses!
- A senhora que me perdoe, mas infelizmente não tá no fim da vida, só o que tem é doença inventada, só morre de raio guacho. Em vez de reclamar devia se precaver como eu, que tenho meu caixão há anos, já a senhora não tem onde cair morta mesmo.
- Cada desaforo que tenho que aguentar.
- Pois é, agora me dê cancha que eu vou passar com meu caixão no lombo, que já ta alumiando.
- Todo o azar da minha vida eu atribuo a este caixão que permiti que ficasse dentro da minha casa, durante todos esses anos.
- Bueno, sinhá, agora vou me recolher pra minha suíte. Se a senhora quiser companhia prá ver a novela me pegue o grito.
- Corinta, minha filha, me alcança um Lexotan?
- Não tem mais, mãe.
- Então uma aspirina, diz, tapando os ouvidos com as mãos pra livrar-se do ruído do caixão empurrado contra a madeira do guarda-roupa.
- Sinhá, suba pra seu quarto que vou lhe levar uma carqueja, já se esqueceu que não tem mais conta na farmácia? Agora prá se curar aqui nessa casa só na base do jujo.
- Verdade, diz dona Marta, rendendo-se a sapiência de Camélio e invejando seu ostensivo cuidado com tão pouco convidativo futuro.
2 comentários:
Muito bom. Impressionante como a Valéria já fixou um estilo. Patabéns ao Tribuna por tê-la nas suas páginas!!! Fernando Alves
Esse Fernando será o mesmo que não é nada Pacífico?
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