A Perda
Carmem Rosa entra pela porta da cozinha, grande e barulhenta com a boca vermelha e o doce e enjoativo perfume.
- O velho recebeu um telefonema dizendo que tua tia do Plano Alto bateu com as casuleta.
- Que? Balbuciou Camélio, segurando rapidamente a mão da patroa.
- Morreu!Puf! Foi! Disse mordendo uma maçã.
- Carmem Rosa isso é jeito de dar uma notícia dessas?
- Viu dona Marta? Não entendo por que a senhora não despacha essa grossa, que nem enfermeira é.
- Não sabe? Pergunta pra o Chiquito. Pergunta o porquê que ele não vai se desfazer de mim até o último dia quando eu vou pranteá-lo na beira do caixão como uma viúva, assim como ele me pediu. Pergunta, vai.
- Carmem Rosa, o recado foi dado, obrigada, disse dona Marta.
Ela sai rebolando debochada, deixando Camélio trêmulo e desolado. Por fim, ele consegue falar ao telefone com uma vizinha da tia.
- O que? De jeito nenhum. Diz que a prefeitura às vezes provedenceia caixão prá miserável. Nã, nã, não, no meu nem pensar, o meu caixão ninguém tasca.
Dona Marta começou a gostar da ideia do caixão ganhar um rumo, saindo prá sempre de dentro de sua casa e de sua vida, não sem sentir uma ponta de dor pelo nervosismo de Camélio que o cuidou com afinco por tantos anos.
- Camélio, meu filho, deixa esse caixão prá quem precisa.
- Dona Marta, eu não tenho ninguém na vida, tinha a senhora que agora não pode mais me ajudar, nessa baita naba que lhe pegou. Mandei o marceneiro fazer meu caixão bem como eu queria, não é justo deixar que a morte me pegue com as calças na mão, doando meu caixão prá esta velha, que Deus a tenha na sua insana glória.
- Te desfaz deste caixão, a hora é agora, Camélio.
Dona Marta, Marina e Corinta acompanharam Camélio ao velório. O enterro seria no fundo da casa, numa nesguita de campo.
A vizinhança berrava, comendo bolo frito e bicando uma garrafa de barriga mol que o bolicheiro trouxe pra acompanhar o velório, que as três mulheres enfrentaram perigosamente no rancho gelado.
- Ideia tua, sussurrava dona Marta no ouvido de Corinta. Nunca mais hipoteco solidariedade em ambientes como este.
Ao amanhecer cinco homens sujos, com as coalheiras reviradas de tanto bolo frito e fedendo a canha seguraram as alças do caixão. Camélio se apressou em segurar a que sobrara. O cortejo sai bambalhante, rumo ao túmulo verde-água, atrás da figueira. O homem da dianteira tropeça numa pedra, a ponta do caixão bate na árvore e o fundo, devagar se desprega. Mãos tentam amparar a madeira, o caixão segue rangendo e por fim despenca a velha descomposta no chão, tapada de margarida e marias-moles.
Camélio teve um ataque de nervos assustador que só foi amenizado quando a patroa lhe cochichou que só chinaredo faz escândalo em velório. Ao meio dia o caixão estava pregado e a tia enterrada com dignidade.
Camélio fez a viagem de volta fungando lamentando não a morte de sua única parente e sim o fato dela ter levado junto a única segurança que ele tinha na vida. Seu precioso, cuidadíssimo, lustroso e derradeiro cômodo.
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