Ruptura
Texto e foto de Valéria del Cueto
Nem é preciso abrir os olhos. Basta aguçar os demais sentidos. Os sons não ferem.
O do fundo é contínuo. Água correndo nas pedras, mas não muita. Um murmúrio alto em tempo de pouca chuva.
Um pássaro solitário cantante e um grilo quase falante de tão animado discutem! Também dá para perceber a conversa mansa do bambuzal, mas só quando venta.
Nada de tecer comparações, que é para não precisar fazer um exercício de memória e transpor para o papel a tortura dos meses a fio de enclausuramento.
Os cheiros também são outros. Até o de comida, única possível semelhança entre os ambientes.
Terra, plantas, flores e frutos. Carambola. O de cachorro molhado também.
Sangue bom é um vira-latasss aventureiro e, quando volta das viralatices que podem durar vários dias, vem todo estropiado. E fedorento...
Mesmo sem nenhuma tentativa de aproximação escolheu a mesa baixa da varanda, junto ao interruptor da luz pra se recuperar das estrepolias.
Dependendo da direção do vento o cheiro de cachorro molhado chega até a rede que balança tão vadia quanto ele.
Quando o vento muda de lado as roupas penduradas nos varais próximos da lavanderia exalam um leve perfume enquanto secam num vai-e-vem. Tão preguiçosas ao sol do pé da serra.
O tempo do tempo mudou, mas continua sendo pouco, seja na cidade ou por aqui. Ainda falta tempo para fazer um monte de coisas, tudo no seu próprio tempo. Que urge, porém não se adianta.
A rotina agora é outra. Também marcada pelas risadas, correrias e a gritaria animada das menininhas felizes, sapecas e saltitantes que se sobrepõe ao cantar distante do galo equivocado. Sempre às quatro horas da tarde.
Daqui a pouco começa a esfriar. O sol está caindo cedo...
Ah! Tem o céu. É o mesmo. Só que o daqui é emoldurado pelas copas das árvores gigantescas que fazer um desenho aleatório e filigranado contrastando com o azul, o branco e o cinza plúmbeo, mais pesado.
Nessa época a chuva é pouca. Num amanhecer seus sinais eram visíveis nas gotinhas dançarinas refletindo a luminosidade que brincavam de quase cair pela beirada do telhado da varandinha.
Dava pra vê-las do posto de observação. Dava até para tentar igualar o ritmo das idas e vindas com a queda dos pingos.
Leva tempo para sincronizar os movimentos. E tempo, sabemos, temos só algum. Porém não para muitas gotas.
Pra acabar com a experiência bate um sopro de vento da nuvem de algodão que passa rápida. Não muito forte.
O suficiente para jogar por terra a brincadeira junto com a pingação se precipita da calha, reanimada com a água derramada pelas folhas das árvores em cima da casa.
O sol reaparece, as roupas tremulam na corda e o dia recomeça.
O tempo já não nos pertence. O dono dele é o cheiro forte que vem da cozinha. Sangue bom se anima, sabe o que o espera.
Hora de tomar um café...
*Valéria del Cueto é jornalista, fotógrafa e gestora de carnaval. Da série “Não sei onde enquadrar” do SEM FIM... delcueto.wordpress.com
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