Texto e foto de Valéria del Cueto
Melhor assim, ninguém se lembrará, nem tentará me mover enquanto o céu estiver caindo e as prioridades forem outras. Como os alagamentos que sempre acontecem ali pros lados do Maracanã, por exemplo.
Fico aqui aos seus pés, onde passei desapercebido até uma twittada entregar, com direito a prova documental fotográfica, minha permanência na praça. A despretensiosa postagem na rede social continha a imagem em que grades e tapumes, sabedores e cúmplices da minha ventura, tentavam camuflar meu disfarce alegórico quase abraçado a Apoteose. Ela chamou a atenção do mundo (pelo menos o do samba) para minha localização inusitada.
Sem querer ofender (pelo contrário), o ilustre responsável pelo conteúdo maravilhoso da plataforma Ouro de Tolo, acho que rolou uma certa invejinha boa.
Não pude acreditar quando eu, um chassi apaixonado pelo carnaval, cujo nirvana para o povo do samba é chegar a Apoteose, fui dirigido a esse local icônico após o hiato do calendário carnavalesco provocado pela pandemia.
Quer saber? Pode chamar de paixão, classificar como doença ou dizer que é um vício irrecuperável. Arrio todos os meus pneus pela emoção de cruzar aquela Sapucaí de ponta a ponta. Topo tudo! A imobilidade exasperante e os maus tratos na preparação da alegoria do ano, o peso insuportável dos ferros, madeiras, forrações, esculturas, traquitanas, badulaques. O remelexo extra nos meus já cansados amortecedores das composições e destaques que sacolejam no percurso da pista nos desfiles das agremiações carnavalescas.
Ultimamente atravessava a avenida apenas uma vez por ano, no Grupo Ouro. Mas já reinei imponente numa escola do Especial! Daquelas que além do desfile oficial têm vaga cativa no sábado das campeãs. O esforço de minha robusta estrutura de ferro era reconhecido e saudado pelo concreto armado dos arcos da Apoteose. Sempre gentil e incentivadora dos que se aproximavam. Corações palpitantes, corpos suados, mentes em êxtase no caso dos componentes das agremiações. Sempre dedicou um cumprimento estimulante às estruturas inumanas incorporadas a procissão profana.
Assim nasceu nosso querer. Nos aproximamos num momento em que os acessórios anteriormente descritos, aliado ao calor insuportável da iluminação e parte elétrica da alegoria quase fizeram com que me rendesse ao mau humor recorrente da torre traiçoeira que desejava uma pane nas engrenagens acopladas para travar a maravilhosa apresentação que a escola fazia. Foi o estímulo revigorante da visão dos arcos da Apoteose e sua energia que geraram o esforço extra necessário para impedir o colapso eminente e me fizeram deslizar para o aconchego do seu abraço.
Quando o desgaste natural fez com que fosse substituído por um equipamento mais novo, agradeci ao deus do carnaval por ter sido doado a uma afilhada do grupo de acesso. Pelo menos uma vez por ano podia cair nos braços da Apoteose e, felicidade das felicidades, conseguia avistá-la do barracão situado no bairro do Estácio, nas proximidades da Sapucaí!
Até que a pandemia chegou. Diante do estado deteriorado em que me encontro temi nunca mais voltar ao abraço da icônica escultura de Oscar Niemeyer. Foi quando o milagre aconteceu. Fui acionado e movimentado para a Sapucaí. Meus Deus! E, em vez de uma passagem cronometrada deixado bem ali embalado no berço do samba. Aos pés dos guias, os arcos, e da mítica de minha paixão carnavalesca, a Apoteose.
Até Pedro Migão me notar, registrar e postar.
Não guardo mágoas nem rancor. Se tiver que partir tive o que, talvez, outros não tenham. A oportunidade de matar essa saudade doída ritmada pelos sons distantes que chegam a você, Apoteose, e a mim, chassi véio de guerra, das quadras que começam seus ensaios para o carnaval. Sou pura esperança. Daquele que podemos não saber quando, mas certamente virá.
Como a espera, a folia sempre alcança.
*Valéria del Cueto é jornalista e fotógrafa. Da série “É carnaval” do SEM FIM... delcueto.wordpress.com
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