Mostre-me um exemplo TRIBUNA DE URUGUAIANA: agosto 2020

19 de ago. de 2020

Alto Risco - crônica de Valéria del Cueto

Alto Risco

Texto, foto e vídeo de Valéria del Cueto

Troco as pontas que tanto amo, a do Leme e do Arpoador. Esclareço aos mais recentes chegados às leituras do Sem Fim que são elas, na orla carioca, os lugares que mais gosto quando penso em falar da vida.

Para isso estendo a canga, estico o raciocínio destrinchando as ideias antes de embrulhar as palavras, apertadas nas duas laudas que me cabem, e mando ver.

Sai facilzinho mais um texto @no_rumo das histórias que passam diante dos meus olhos ultimamente tão perplexos. Desde o início da pandemia perdi o direito de estacionar ao ar livre e respeitei as recomendações. Quando não aguentava mais a falta das paradas obrigatórias, fiz igual ao gato. Subi no telhado. De lá, esticando a canga de peixinhos no concreto da laje e trocando o barulho do mar pelos resmungos da água subindo para encher a caixa, fiz um esforço danado, num exercício concentrado de imaginação para manter o fio das palavras, o curso das ideias.

O tempo passou e a imobilidade me obrigou a correr mais riscos que os andares que subia pela escada de incêndio para não dividir o elevador do prédio, sob direção bolsonarista e, portanto, gerenciado na toada da gripezinha e da terra plana.

Não, não há um cuidado maior por aqui que um álcool gel para quem pede na portaria. A entrada é livre para moradores, entregadores e afins. Tanto gente como cachorro não precisam pisar em tapetes sanitizadores. Se você não pedir para abrir o portão que corre, o da garagem, ainda tem que empurrar com as mãos o menor que é de mola. E também não, ninguém protesta, ninguém reclama. Eu passo voando pelos heróis da portaria e tento ajuda-los, quando posso.

A praia me espera. No início era só caminhada e entre os passos cuidadosos na areia fofa (fortalecer as pernas com cuidados básicos para não detonar os joelhos) ia construindo mentalmente a teia de cada crônica.

Quantas vezes pensei em tirar a canga demarcatória e rezar para ser mais rápida na rabiscagem que a chegada dos fiscais, guardas municipais e PMs, que deveriam permitir apenas exercícios na orla.

O diálogo seria mais ou menos esse... “Senhora, não pode ficar na praia. Só se estiver fazendo exercícios”, diria o responsável pela ordem do alto de seu quadriciclo de fiscalização.

“É o que estou fazendo, seo guarda”, tentaria explicar perscrutando seus olhos. O rosto da autoridade semicoberto pela máscara mal colocada impediria avaliar sua expressão. “Exercito minha escrita, dando um gás na imaginação para melhor a performance literária...”

Nem tentei o argumento diante da ausência do requisito mínimo de prevenção nas faces da maioria das autoridades vigilantes, aquelas que deveriam zelar pela saúde pública e as próprias.  Sinto que esse tipo de exercício, o literário, não estaria na lista dos admitidos no decreto municipal.

Um “teje preso”, inevitável diante das circunstâncias higiênicas dos valorosos membros das corporações, não seria de modo algum adequado.

Os dias passaram as crônicas, de uma maneira ou de outra, vieram e as praias parece que um dia serão liberadas. Enquanto aguardávamos os delirantes cercadinhos que o genial prefeito Crivella prometeu implementar por aplicativo virtual, quem pôde resolveu aproveitar a liberdade provisória.

Tive que fugir das pontas para alcançar um espaço que me permitisse desenhar meus pensamentos no caderninho! O bom e velho Quase Nove foi o local menos crítico, onde reencontrei o prazer de unir o som do mar, o apito dos salva-vidas e as cócegas da caneta deslizando pelo papel.

Pela sensação de conversar com o vento e construir o texto no ritmo do murmúrio do oceano? Vale o alerta da bandeira vermelha de ALTO RISCO da ressaca que levanta o mar para os surfistas ou da Covid-19, a que baila livre, leve e mortal impulsionada pela ignorância que circula de cara limpa impunemente pela cidade que já foi maravilhosa.

Use máscara!

**Valéria del Cueto é jornalista, fotógrafa e gestora de carnaval. Da série “Arpoador” do SEM FIM... delcueto.wordpress.com


Studio na Colab55

5 de ago. de 2020

Não conto, de Valéria del Cueto

Não conto

Texto e foto de Valéria del Cueto

Esperei. Por sete dias...

Nos tempos da natação, nas categorias infanto-juvenil da equipe do Flamengo, quem treinava de manhã no grupinho de três ou quatro tinha uma mania/simpatia. Se você sonhava com uma coisa e quisesse que ela acontecesse tinha que contar antes do café da manhã. Se fosse um pesadelo só podia contar depois para evitar sua concretização.

Era o tipo de brincadeira como encontrar placa de carro em que os números da licença somassem nove e fazer um pedido. Se a gente cruzasse com uma mulher grávida e alguém de chapéu (boné não valia), era certeza que o desejo se tornaria realidade.

O que causava transtorno na simpatia do sonho é que o treino começava às seis da matina e sem chance para se alimentar e enfrentar horas de piscina. O café com pão e companhia eram depois do esforço físico. Não dá para treinar de barriga cheia...

Contar o sonho, se fosse bom, era uma das coisas que atrapalhavam e mereciam reprimendas do técnico que não alcançava o motivo de tanto tititi madrugador. Era mais difícil esperar o fim do treino porque todo mundo saía correndo apressado para começar a rotina diária.

Sempre que tenho um SONHO com maiúsculas me lembro da brincadeira e, sim, procuro seguir à risca a simpatia.

Deixei passar o café da manhã e muitos dias sem contar pra ninguém sobre o silêncio ensurdecedor. Ultrapassei os prazos para nem depois do almoço, ou dos jantares, externar em palavras o hiato absurdo da ausência.

Pulei o evento e passei para o outro lado, imaginando o despertar para a irrealidade dos sonhos interrompidos, dos projetos infindos. Sou parte disso, o que facilita a projeção. E, sim, acredito em passagem, em “firmar” na inconsciência para facilitar a consciência.

Não consigo ir além da estupefação e da revolta, então tentei mentalizar saídas, opções e a muito breve reencarnação para poder continuar de onde parou (dizem que a gente não esquece o que aprende e sempre anda pra frente). Com a mesma fome de justiça, a voz rouca punk rock. Talvez um tiquinho menos explosivo, que é para segurar o coração, mas sempre jogando de maneira franca e aberta. Como foi o convite para fazer a coluna batizada por ele de “Crônicas do Sem Fim...”, na revista Ruído Manifesto.

Mal entrei e ele partiu. Me deixou muda exatamente depois de combinarmos fazer muito barulho. O soco no estômago ainda dói como se fosse verdadeiro.

A falta do fio com a revista se mantém porque não há linha forte o bastante para resistir ao cerol da fatalidade que mandou para o céu a big pipa inquieta e curiosa que vadiava (no bom sentido) em busca de horizontes mais altos e visíveis para novos escritores, poetas, artistas. De Mato Grosso para o mundo. A pipa se foi, mas o fio ficou...   

E os dias se passaram, com aquele vácuo barulhento incomodando, impedindo qualquer forma de expressão, qualquer tentativa de reação.

Foi assim até o dia que o mar, devagarzinho, pariu no horizonte a lua cheia de agosto. Redonda que nem bolacha (lembrou alguém?). Fazendo suas gargalhadas se refletirem nas marolas animadas de uma pós ressaca daquelas!

Fiquei em paz com minha revolta, guardada para as muitas ocasiões que, meu amigo sabia e sobre isso conversamos, precisaríamos muito dela.

Ao fio, que une a todos nós do Ruído Manifesto (olha eu bancando aquele...) anuncio que estou aqui, pronta para “voar” na gritaria.

Re-começo com “Não Conto” para, como ele que partiu até ali, (res) suscitar na poesia, na prosa e, no meu caso, nas imagens. Elas, as que  fazem de nós ruidosos manifestos impermanentes da inquietação e, quem sabe, da esperança.

*Pro Rodivaldo.

**Valéria del Cueto é jornalista, fotógrafa e gestora de carnaval. Da série “Arpoador” do SEM FIM... delcueto.wordpress.com

Studio na Colab55