Mostre-me um exemplo TRIBUNA DE URUGUAIANA: 2020

25 de nov. de 2020

O voto e o veto - crônica de Valéria del Cueto


O voto e o veto

Texto, foto de Valéria del Cueto

Alô, base. Aqui Pluct Plact em mais um relatório.

Esse não é para você, cara cronista voluntariamente distante desse redemoinho invertido que rodopia afundando tudo que nele se enreda. Entendeu a imagem? Explico.

Aqui não é o Kansas, nem esse desastre recorrente vai te levar, qual Dorothy Gale, pelos ares com seu cãozinho Totó para desabar na terra dos munchkins. Nem, como lá, a casa voadora cairá em cima da Bruxa Má do Leste, esmigalhando a malvada...

Por essas bandas quando se é pego pelo tornado a saída não está no alto, mas mais embaixo. Dele, o buraco, é quase impossível escapar. Não tem Glinda, a Bruxa do Norte, para dar sapatos mágicos, nem amigos para trilharem cantarolando o caminho dos Tijolos Amarelos. Muito menos Cidade das Esmeraldas... Apesar de, sim, termos um Mágico de Oz e tudo que isso implica.

Estou tentando (eu disse tentando) destrinchar os últimos acontecimentos. Sem muito sucesso, confesso.

Só agora, por exemplo, o moço do topete laranja que comanda o maior país do mundo resolveu considerar levemeeente a hipótese de que pode ter perdido a disputa eleitoral para seu concorrente no início de novembro. Eu disse considerar a hipótese porque, como a esperança que é a última que corre, Trump está na base do “daqui não saio, daqui ninguém me tira”, dificultando a transição e acreditando que no dia da votação dos delegados algo inédito poderá acontecer. Como os democratas votarem nele!

Só agora... por mais incrível que pareça, dizem que a energia voltou ao Amapá, depois de 22 dias de escuridão, apagão, vaias, revolta e muita gente dizendo que o filho feio não era seu.

Só agora... descobriram milhões de doses de testes da malfadada Covid-19 perdendo a validade num galpão do Ministério da Saúde, em Guarulhos.

Como explicar o que dizem por aí aos colegas interestelares? Que o General alçado à chefia do Ministério chave por sua expertise em logística não corrigiu (dado aqui o benefício da dúvida, acho que ele não sabia o que havia no seu quintal) a falha na aquisição dos cotonetes de haste longa para a realização dos testes? Não acredito nessa possibilidade. E para explicar que tem mais testes perdendo a validade do que TODOS os que já foram aplicados no país?

É isso que você está lendo, cronista. Nunca foi tão pertinente sua disposição de se isolar nessa cela apenas frequentada por um raio de luar. Sabe por que? Porque a pandemia não dá trégua e o FICA EM CASA que todos os agentes de saúde bradam parece não fazer parte do reduzido (e agressivo) vocabulário do brasileiro em geral. Ele não sabe somar dois mais dois para chegar aos números assustadores da pandemia, nem tem tempo de aprimorar seu conhecimento literário. Afinal, quem aprende alguma coisa depois de partir dessa para melhor quase sem chance de repescagem?

Para completar, o tornado que enterra e passa por aqui se chama eleição. O segundo turno, especialmente. O momento em que o voto é essencial, mas perde sua beleza porque passa a ser veto. Quando o povo vai às urnas não para escolher o melhor, mas para impedir que o pior chegue lá. Não se discutem propostas nem programas! O que valem são as alianças, por mais espúrias que sejam, para garantir um “aqué” ou uma vantagem ali na frente.

É um processo em que não se constroem sonhos ou discutem soluções. Parece que o único meio de chegar à vitória é destruindo a reputação do oponente...

Finalizo com uma reflexão baseada num de seus “amores”, o carnaval. Marginalizado, suspenso e a priori transferido pelas “ôtoridades” para julho de 2021.

Você vai gostar e, talvez, até botar seu narizinho pra fora disfarçada de Colombina. Cheguei a conclusão que Dona Coronga é uma foliã. Se considerarmos a festa uma manifestação que subverte a ordem (como a descrevem os teóricos e estudiosos), a Covid-19 está fazendo seu papel! 

Em fevereiro acabará com as cordas cantadas no samba Plataforma de João Bosco e Aldir Blanc e o famigerado “caderno de encargos” do quase, quem sabe, prefeito Eduardo Paes, numa só tacada.

E, é claro, não haverá como impedir o povo de ir às ruas, nem que seja no Bloco do Eu Sozinho, assim como é o momento de colocar o voto na urna. Mais carnavalesca impossível.

Uma pequena réstia de luz no fim do túnel? Só mesmo aí na sua cela, onde o raio de luar nunca falha se o céu estiver claro...    

*Valéria del Cueto é jornalista, fotógrafa e gestora de carnaval. Da série “Fábulas Fabulosas” do SEM FIM... delcueto.wordpress.com

Studio na Colab55

11 de nov. de 2020

Ocaso e o caso, crônica de Valéria del Cueto


Ocaso e o caso

Texto, foto de Valéria del Cueto

Origem da mensagem: digitalização direta, sem direito a rabiscação no caderninho.

Localização: em trânsito para conseguir alcançar a fresta do luar pela janela, mesmo que na minguante.

Dear cronista, peço desculpas pela demora. Tenha certeza foi melhor assim. Pensei no bem estar da amiga e na possibilidade de poupar momentos de tensão, os que não são nada bons para quem está voluntariamente encarcerada do outro lado do túnel.

Andei muito ocupado tentando capturar, registrar e indexar os últimos acontecimentos. Para efeito de registro intergaláctico, uma das missões que vim fazer nesse planeta, como sabe. Como também é do seu conhecimento que meu retorno para o espaço sideral depende diretamente da situação das camadas estratosféricas. As que andam tão alteradas a ponto de não me deixarem seguir meu rumo pela Via Láctea.

Pois saiba que hoje conheci um sentimento humano, sobre o qual já havia lido, sem ter a dimensão de sua expressão. Foi como estar perdido no deserto, ver um oásis e descobrir que não, não era uma miragem (mal comparando com cenas que já vi - acho que no clássico filme Laurence da Arábia). Aquela luz que inunda o que vocês chamam de peito e se projeto por todo o corpo? Eu, seu amigo Pluct Plact, o extraterrestre, senti esperança!

Te poupei, amiga, de momentos de análise das opções (uma não tão má e outra péssima) e o desenrolar de uma batalha eleitoral que não é nossa (olha eu) mas que trouxe futuros reflexos diretos sobre o digamos, way of life do governo do seu país.

De acordo com parte do mundo que já o cumprimentou, Joe Biden é o novo presidente eleito democraticamente pelo povo americano. Sua votação é a maior da história e a vitória no colégio eleitoral está consolidada.

A eleição mobilizou não apenas o país em questão, mas o planeta. Das duas uma: ou os EUA seguiam a ondulação perigosa do topete ensandecido de Donald Trump ou, numa guinada, priorizavam questões como a pandemia (que explode por lá) e o grave quadro das mudanças climáticas.

Foi tenso o processo e dele preferi poupa-la. Tipo FLAxFLU em final de campeonato. Não vou enrolar. Os republicanos saíram na frente, porque votaram mais de forma presencial, nas primeiras urnas abertas. Mas depois... O primeiro sinal de quem seria o vencedor veio de Donald Trump que já no início da contagem se adiantou e declarou ser o vitorioso. Cedo demais.

Com votos presenciais e vindos pelos correios, cada estado procedendo de acordo com sua legislação própria, a consolidação do nome do escolhido demorou. Enquanto isso, Trump já avisava que iria judicializar os resultados. Era contra a inclusão dos votos que, enviados pelo correio, chegaram depois do dia da eleição. Os democratas, por causa da Covid-19, pediram para seus eleitores que votassem antes para evitar aglomerações. Entendeu?       

Na noite de sábado - a votação foi na terça, Joe Biden comemorou em Delawere a vitória nas eleições americanas. Em tempos normais, caberia ao perdedor parabenizar o vencedor, para avisar aos americanos que a vitória do adversário era reconhecida. Normalmente... mas Trump não segue o padrão e continua afirmando que não reconhece Joe Biden como futuro presidente americano.

Como a fila andou, o democrata já anuncia medidas contra a Covid-19, pede que a população use máscara até a chegada da vacina e trabalha na transição. Trump, encastelado na White House, diz que vai até as últimas consequências enquanto pede revisão nas contagens em estados chave vencidos por JB, o deles. (O Bolsonaro, JB de cá, continua no limbo sem reconhecer os eleitos e vendo como termina o discurso de fraude que ele próprio rascunha por aqui, lembra?)

Querida cronista, deixei por último a esperança que mencionei no início. É a vice-presidente eleita, Kamala Harris. Mulher, preta, filha de uma indiana e um jamaicano. Seu sorriso ilumina e estimula a diversidade no jogo democrático. Sua postura confiante   representa a chance de uma guinada de rumo menos radical na maior nação do imundo.

Black lives matter and care about climate change is coming. Go Joe Biden, welcome Kamala!

*Valéria del Cueto é jornalista, fotógrafa e gestora de carnaval. Da série “Fábulas Fabulosas” do SEM FIM... delcueto.wordpress.com


20 de out. de 2020

Rastreio de contato - crônica de Valéria del Cueto



Rastreio de contato

Texto, foto de Valéria del Cueto

“Não vou, não quero...” E tem toda razão, cronista querida. Como sempre e mais que nunca eu, Pluct Plact, seu amigo extraterrestre de estimação, reafirmo e confirmo a sensatez de sua decisão de voluntariamente ocupar um espaço exclusivo no Pinel, do outro lado do túnel, se isolando desse mundão que se desconstrói a 360 graus de olhos vistos.


Não tem mais espaço para varrer para embaixo da ponta do tapete o desacerto geral. Foi ele, o desacerto, que criou a lei da razoabilidade. Ela se sobrepõe a lei literal quando a justiça morre pela boca da arrogância mal administrada. Ou lei é lei ou é mais ou menos.

Por essa porta escancarada André do Rap, o famoso traficante pouco elegante, saiu do presídio. Alguém esqueceu de pedir a renovação do pedido de prisão preventiva do traficante condenado em segunda instância.

Enquanto o ministro do Supremo o liberava, mediante um clássico perdido, avisando que iria para o Guarujá o agora procurado da Interpol rumava para destino incerto ou ignorado. Talvez Paraguay, quiçá Bolívia que não tem extradição, antes da contraordem do presidente do STF. Onde andará o traficante?
Isso, cara cronista, no feriado da Santa Padroeira do Brasil. Enquanto o povo, alheio a pandemia, procurava divertimento apesar das comemorações em Aparecida e em Belém, do Círio de Nazaré, estarem reduzidas e virtuais.

A inauguração da loja da Havan na capital do Pará, as cenas cariocas da balada no Leblon e o agito na Praia do Rosa, em Santa Catarina, comprovam que aglomerar é uma necessidade intrínseca e atávica do ser humano.

Justiça seja feita, o exemplo vem de cima. Bem de cima. O presidente americano, em plena campanha à reeleição praticando seu negacionismo prepotente em reuniões e comícios “covidou”. Precisou de oxigênio, quicou no hospital e voltou à corrida eleitoral contra Joe Biden.

Não adianta conjecturar sobre o resultado das urnas nos EUA. Lá, como aqui, Trump já avisa que vai dar defeito se perder.

O tiro saiu pela culatra. O argumento está dando um gás ainda maior nos eleitores democratas que, agora, trabalham para ganhar de muito. As votações já começaram e vão até 3 de novembro.

Se por lá as estratégias são altamente profissionais por aqui o momento eleitoral é de diversidade e de pluralidade entre os candidatos a prefeitos e vereadores dos municípios brasileiros. Tem de um tudo. Muito mais de uns do que de outros.

O bombardeio está apenas começando, mas já deu para avaliar que o jogo é duro, o combate bruto e os resultados imprevisíveis com tempero de covid-19.

Se o exemplo que vem de cima é deplorável, imagina o efeito cascata geométrico para quem está embaixo.

As máquinas da nave trabalham sem parar indexando os dados que chegam por todos os meios disponíveis. As redes estão poluídas por avatares, memes, clipes, denúncias e, claro muita fakenews.

Tudo, menos o que seria mais: propostas para melhorar a vida do cidadão e da sociedade.

Tinha acabado a mensagem que chegará até você pelo raio de luar que invade sua cela, mas duas últimas informações tiveram que ser acrescentadas.

Depois da afirmação de que “não existe corrupção no governo” a valorosa polícia federal deu uma incerta na casa de um senador vice-líder e descobriu dinheiro guardado na cueca do empregador do sobrinho do mandatário. Não darei maiores detalhes para não a constranger com detalhes escatológicos.
Parece que daqui a pouco haverá protocolo para o rastreamento de contato da corrupção latente. Aquela, que, como a Covid-19, não escolhe a vítima, ataca indistintamente.

Para fechar, Lucho Arce venceu as eleições na Bolívia. Evo Morales comemora e prepara seu retorno à casa.

*Valéria del Cueto é jornalista, fotógrafa e gestora de carnaval. Da série “Fábulas Fabulosas” do SEM FIM... delcueto.wordpress.com
Studio na Colab55

30 de set. de 2020

Espaço alheio


Espaço alheio

Texto, foto de Valéria del Cueto

Era uma fresta do terreno do edifício. Uma nesga que sobrou do projeto arquitetônico, mais um quadrado ao lado do apartamento do porteiro no térreo. No princípio nem calçado o terreno era.

Ficava do outro lado do muro do espaço destinado à área de lazer do condomínio usada pela garotada que se esbaldava na “quadra polivalente” de vôlei, queimada, de pelada depois da praia...

Era ela, a bola, que fazia a gente explorar além dos muros quando ia quicar nas bandas do alojamento do porteiro ou pedir passagem para alcançar a casa ao lado, destino certo do objeto perdido.

O tempo passou, a vida seguiu e por muito anos não houve registro da evolução da ocupação ou adequação da área de recreação do prédio para a realidade que também se transformava. Humanizar, reinventar, verdejar? Só se for lá fora...

Numa das voltas que o mundo dá vem um retorno ao mesmo endereço. Um olhar aéreo da janela registra a aridez do ambiente que abrigou tantas brincadeiras, alegrias e gargalhadas. Um nada com fundo cinza escuro onde, no máximo, os carros dos moradores são manobrados. A feiura se completa pela moldura das paredes sujas que só quem mora no bloco de trás é obrigado a apreciar. A sindica, é claro, habita a ala que dá para a rua, cheia de árvores, movimento e vida.

O outro espaço, o da nesga anexa ao quadrado, virou bicicletário. E algo mais. É ali que os funcionários do prédio mantem um pequeno jardim. No espaço estreito, uma fileira de vasos com plantas bem cuidadas. No quadrado, agora pavimentado, fica a área das bicicletas penduradas embaixo de um meio telhado. E, rente a parede, um bucólico banco de madeira e ferro, desses de jardim. Com a permissão dos donos do pedaço uma ou duas vezes usufruí do banquinho quando queria estudar em paz e tinha, por exemplo, barulho de obras dos vizinhos invadindo o apartamento.

Depois de uma intimada, vinda após a declaração de que “importante é que o bloco da frente siga os padrões obrigatórios para não atrair a atenção dos fiscais da prefeitura”, as paredes da antiga área de lazer foram pintadas. Que avanço...

E veio a pandemia, e chegou o isolamento. Todos presos em casa. Incluindo as crianças da nova geração. Novamente as risadas, o barulho das rodas dos velocípedes, brinquedos coloridos. Não da parte triste e mal cuidada dos moradores (que exibe um piso sujo e desleixado), de quem vê a rua das janelas do bloco da frente. A animação infantil se localiza no jardim oculto dos empregados do prédio!

Um dia uma máquina de jato de água aparece limpando o pretume do piso do lado “oficial” abandonado. Ele muda de cor para tons de cinza claro e expõe as cicatrizes das obras feitas na garagem que está no subsolo.

Cheguei a ter esperanças na revitalização do espaço inútil. Dava para transformar num lugar bem aprazível. Caberia até uma horta, imaginava ingênua.

Dias mais tarde as vozes infantis subiram novamente. Elas vinham do jardim dos porteiros agora, em parte, coberto de grama sintética e adereçado com escorregadores, casinhas e outras alegorias infantis.

Em vez de cuidar da área que nos cabe foi mais simples e prático ocupar o recanto bem cuidado dos empregados...

Moral da história: Além de não cuidar do que lhes pertence tem os que sempre almejam e se apossam do que outros constroem com esforço e dedicação.

Agora, amplia a fábula (dessa vez pouco fabulosa) e “modula”, por exemplo, para a reforma administrativa...

*Valéria del Cueto é jornalista, fotógrafa e gestora de carnaval. Da série “Fábulas Fabulosas” do SEM FIM... delcueto.wordpress.com Studio na Colab55

15 de set. de 2020

Quem me navega

Quem me navega

Texto, foto e vídeo de Valéria del Cueto

Ah... querida cronista voluntariamente recolhida em sua almofadada cela do outro lado do túnel. Cada vez compreendo mais sua atitude tão fora do comum na ocasião.

Nosso conhecimento vem daquela época quando – lembro bem – Eike Batista orgulhosamente ancorava seu iate na Enseada de Botafogo. Cheguei a mencionar (acho que foi a primeira tentativa alienígena de fazer uma piada) a proximidade dos dois alojamentos. O dele, al mare, e o seu, no PINEL.

Tanto tempo sem comparecer ao encontro transportado pelo raio de luar que ilumina, pelas barras da janela, sua morada e eu aqui fazendo rodeio para dizer que estou quase lá, com mais de 80% de download de humanidade. Seja lá o que isso significa.

Tenho visto coisas que Deus não só duvida, como qualquer divindade do bem abomina. Feitas descarada e monetariamente com seu santo nome usado em vão. Tipo tirar dinheiro de impostos devidos da boca do povo carente e mergulhado na crise. Acredite, falam de bilhões. No Rio de Janeiro, Bezerra da Silva é uma das poucas unanimidades. Se gritar pega ladrão, a começar por todas as esferas do poder público, em todos os níveis, não fica quase nenhum, meu irmão.

A incorporação quase geral e sem precedentes desse, digamos, “way of life” veio com uma reação planetária visceral aos abusos cometidos e alertas não atendidos. Foi no enjaulamento compulsório coletivo que houve um passo decisivo para nossa mútua adaptação. O encarceramento provocado pela Covid-19 é o exemplo e, agora, a desculpa para os tropeços provocados pelo chega pra lá que o planeta nos dá.

Do macro ao micro os fatos estão aí para provar para quem quiser conferir. Quem nos navega, já desvendou o poeta, é o mar de dúvidas e incertezas em que estamos mergulhados. Presos, no máximo, a uma boiazinha ligada a sabe-se lá o que no meio desse denso nevoeiro.

Me incluo nessa, um extraterrestre que se comunica por um feixe de luz lunar com uma cronista reclusa. Que mar, maré, marola é essa? Explica aí para Pluct Plact, aquele que não consegue forças em seus motores para atravessar a barreira de ozônio? É tipo um movimento cósmico do contra que impede - não, modifica, o rumo dos planos imaginados e decisões tomadas. Não, ninguém vai por aí...

E vale para os grandes e pequenos projetos. Das viagens interplanetárias aos relatos que andam escassos para você, amiga. Não navego nem o meio ideal para emendar essas palavras. Queria o caderninho para manter seu ritual, me conformei em digitar, mas a sede de cócegas da aspereza da caneta no papel venceu. Deu uma pernada na máquina. Ela acabou rateando.

Eis-me aqui, escrevinhando afeto e evitando as notícias em geral. Jurei que não vou me aprofundar nessas questões, mas não posso deixar de inserir informações que situem esse relato no tempo e no espaço.

Mais uma vez estamos envolvidos pela fumaça das queimadas. Elas fazem parte do rol de proezas dos fanáticos negacionistas. Não há fogo, vacina não é necessária e sim, a terra é plana. No caso das queimadas da Amazônia e do Pantanal até general, vice e presidente do Conselho Nacional da Amazônia Legal, faz parte do bloco da Nega Luzia, a que queria tocar fogo no morro. Nero anda tocando harpa por aqui enquanto observa o preço do arroz chegar nas alturas. Estamos importando! Cá pra nós é apenas a ponta do iceberg. Já se avista nas alturas o milho das rações, o trigo do pão e o algodão das roupas. Aí meu etanol!

Os sinais da passagem, tempos atrás, de várias patrulhas visitantes de outras galáxias foram observados em diversos pontos do planeta. Agora não se ouve mais falar das incursões. Como a esperança é a última que “morde”, atribuo a falta de contato visual as dificuldades de adivinhar os sinais no meio do fumacê. Minha mensagem para meus companheiros está pronta para ser encaminhada pelo primeiro alienígena que cruzar o radar embaçado da nave mãe. Nela, peço passagem e carona no rabo do cometa para dois. Lhe incluo nessa, já aviso.

Até lá, vamos seguir devagarinho deixando o mar dos acontecimentos navegar como se fosse nos levar. Será pra onde?

*Valéria del Cueto é jornalista, fotógrafa e gestora de carnaval. Da série “Fábulas Fabulosas” do SEM FIM... delcueto.wordpress.com

Studio na Colab55

19 de ago. de 2020

Alto Risco - crônica de Valéria del Cueto

Alto Risco

Texto, foto e vídeo de Valéria del Cueto

Troco as pontas que tanto amo, a do Leme e do Arpoador. Esclareço aos mais recentes chegados às leituras do Sem Fim que são elas, na orla carioca, os lugares que mais gosto quando penso em falar da vida.

Para isso estendo a canga, estico o raciocínio destrinchando as ideias antes de embrulhar as palavras, apertadas nas duas laudas que me cabem, e mando ver.

Sai facilzinho mais um texto @no_rumo das histórias que passam diante dos meus olhos ultimamente tão perplexos. Desde o início da pandemia perdi o direito de estacionar ao ar livre e respeitei as recomendações. Quando não aguentava mais a falta das paradas obrigatórias, fiz igual ao gato. Subi no telhado. De lá, esticando a canga de peixinhos no concreto da laje e trocando o barulho do mar pelos resmungos da água subindo para encher a caixa, fiz um esforço danado, num exercício concentrado de imaginação para manter o fio das palavras, o curso das ideias.

O tempo passou e a imobilidade me obrigou a correr mais riscos que os andares que subia pela escada de incêndio para não dividir o elevador do prédio, sob direção bolsonarista e, portanto, gerenciado na toada da gripezinha e da terra plana.

Não, não há um cuidado maior por aqui que um álcool gel para quem pede na portaria. A entrada é livre para moradores, entregadores e afins. Tanto gente como cachorro não precisam pisar em tapetes sanitizadores. Se você não pedir para abrir o portão que corre, o da garagem, ainda tem que empurrar com as mãos o menor que é de mola. E também não, ninguém protesta, ninguém reclama. Eu passo voando pelos heróis da portaria e tento ajuda-los, quando posso.

A praia me espera. No início era só caminhada e entre os passos cuidadosos na areia fofa (fortalecer as pernas com cuidados básicos para não detonar os joelhos) ia construindo mentalmente a teia de cada crônica.

Quantas vezes pensei em tirar a canga demarcatória e rezar para ser mais rápida na rabiscagem que a chegada dos fiscais, guardas municipais e PMs, que deveriam permitir apenas exercícios na orla.

O diálogo seria mais ou menos esse... “Senhora, não pode ficar na praia. Só se estiver fazendo exercícios”, diria o responsável pela ordem do alto de seu quadriciclo de fiscalização.

“É o que estou fazendo, seo guarda”, tentaria explicar perscrutando seus olhos. O rosto da autoridade semicoberto pela máscara mal colocada impediria avaliar sua expressão. “Exercito minha escrita, dando um gás na imaginação para melhor a performance literária...”

Nem tentei o argumento diante da ausência do requisito mínimo de prevenção nas faces da maioria das autoridades vigilantes, aquelas que deveriam zelar pela saúde pública e as próprias.  Sinto que esse tipo de exercício, o literário, não estaria na lista dos admitidos no decreto municipal.

Um “teje preso”, inevitável diante das circunstâncias higiênicas dos valorosos membros das corporações, não seria de modo algum adequado.

Os dias passaram as crônicas, de uma maneira ou de outra, vieram e as praias parece que um dia serão liberadas. Enquanto aguardávamos os delirantes cercadinhos que o genial prefeito Crivella prometeu implementar por aplicativo virtual, quem pôde resolveu aproveitar a liberdade provisória.

Tive que fugir das pontas para alcançar um espaço que me permitisse desenhar meus pensamentos no caderninho! O bom e velho Quase Nove foi o local menos crítico, onde reencontrei o prazer de unir o som do mar, o apito dos salva-vidas e as cócegas da caneta deslizando pelo papel.

Pela sensação de conversar com o vento e construir o texto no ritmo do murmúrio do oceano? Vale o alerta da bandeira vermelha de ALTO RISCO da ressaca que levanta o mar para os surfistas ou da Covid-19, a que baila livre, leve e mortal impulsionada pela ignorância que circula de cara limpa impunemente pela cidade que já foi maravilhosa.

Use máscara!

**Valéria del Cueto é jornalista, fotógrafa e gestora de carnaval. Da série “Arpoador” do SEM FIM... delcueto.wordpress.com


Studio na Colab55

5 de ago. de 2020

Não conto, de Valéria del Cueto

Não conto

Texto e foto de Valéria del Cueto

Esperei. Por sete dias...

Nos tempos da natação, nas categorias infanto-juvenil da equipe do Flamengo, quem treinava de manhã no grupinho de três ou quatro tinha uma mania/simpatia. Se você sonhava com uma coisa e quisesse que ela acontecesse tinha que contar antes do café da manhã. Se fosse um pesadelo só podia contar depois para evitar sua concretização.

Era o tipo de brincadeira como encontrar placa de carro em que os números da licença somassem nove e fazer um pedido. Se a gente cruzasse com uma mulher grávida e alguém de chapéu (boné não valia), era certeza que o desejo se tornaria realidade.

O que causava transtorno na simpatia do sonho é que o treino começava às seis da matina e sem chance para se alimentar e enfrentar horas de piscina. O café com pão e companhia eram depois do esforço físico. Não dá para treinar de barriga cheia...

Contar o sonho, se fosse bom, era uma das coisas que atrapalhavam e mereciam reprimendas do técnico que não alcançava o motivo de tanto tititi madrugador. Era mais difícil esperar o fim do treino porque todo mundo saía correndo apressado para começar a rotina diária.

Sempre que tenho um SONHO com maiúsculas me lembro da brincadeira e, sim, procuro seguir à risca a simpatia.

Deixei passar o café da manhã e muitos dias sem contar pra ninguém sobre o silêncio ensurdecedor. Ultrapassei os prazos para nem depois do almoço, ou dos jantares, externar em palavras o hiato absurdo da ausência.

Pulei o evento e passei para o outro lado, imaginando o despertar para a irrealidade dos sonhos interrompidos, dos projetos infindos. Sou parte disso, o que facilita a projeção. E, sim, acredito em passagem, em “firmar” na inconsciência para facilitar a consciência.

Não consigo ir além da estupefação e da revolta, então tentei mentalizar saídas, opções e a muito breve reencarnação para poder continuar de onde parou (dizem que a gente não esquece o que aprende e sempre anda pra frente). Com a mesma fome de justiça, a voz rouca punk rock. Talvez um tiquinho menos explosivo, que é para segurar o coração, mas sempre jogando de maneira franca e aberta. Como foi o convite para fazer a coluna batizada por ele de “Crônicas do Sem Fim...”, na revista Ruído Manifesto.

Mal entrei e ele partiu. Me deixou muda exatamente depois de combinarmos fazer muito barulho. O soco no estômago ainda dói como se fosse verdadeiro.

A falta do fio com a revista se mantém porque não há linha forte o bastante para resistir ao cerol da fatalidade que mandou para o céu a big pipa inquieta e curiosa que vadiava (no bom sentido) em busca de horizontes mais altos e visíveis para novos escritores, poetas, artistas. De Mato Grosso para o mundo. A pipa se foi, mas o fio ficou...   

E os dias se passaram, com aquele vácuo barulhento incomodando, impedindo qualquer forma de expressão, qualquer tentativa de reação.

Foi assim até o dia que o mar, devagarzinho, pariu no horizonte a lua cheia de agosto. Redonda que nem bolacha (lembrou alguém?). Fazendo suas gargalhadas se refletirem nas marolas animadas de uma pós ressaca daquelas!

Fiquei em paz com minha revolta, guardada para as muitas ocasiões que, meu amigo sabia e sobre isso conversamos, precisaríamos muito dela.

Ao fio, que une a todos nós do Ruído Manifesto (olha eu bancando aquele...) anuncio que estou aqui, pronta para “voar” na gritaria.

Re-começo com “Não Conto” para, como ele que partiu até ali, (res) suscitar na poesia, na prosa e, no meu caso, nas imagens. Elas, as que  fazem de nós ruidosos manifestos impermanentes da inquietação e, quem sabe, da esperança.

*Pro Rodivaldo.

**Valéria del Cueto é jornalista, fotógrafa e gestora de carnaval. Da série “Arpoador” do SEM FIM... delcueto.wordpress.com

Studio na Colab55

22 de jul. de 2020

Pose de gostosa, crônica de Valéria del Cueto

Pose de gostosa

Texto e foto de Valéria del Cueto

Esse texto também sai da foto que o ilustra. Por si só ela dá seu recado para quem, além de olhar a imagem, consegue ver a mensagem. Não espere que ela seja descrita por aqui. É ponto de partida. Ou de chegada, dependendo da interpretação de cada um.

A minha é que estamos assim, colados na rede, sem saber se vivos, por um fio, ou já secando sem saber.

Nas duas hipóteses, o que resta é a trama. Para o bem ou para o mal, a gosto do freguês.
Mudando a abordagem, temos o ferro, mineral sustentando a planta, vegetal. A rigidez dando suporte à flexibilidade do abraço orgânico enquanto se submeter a teia.

É vida real em que toda regra tem exceção. No caso, ainda no quadro visual do quinto andar, cercado de prédios pelas quatro ruas que o compõe, divisa de Copacabana e Ipanema, onde os muros das muitas garagens e poucas áreas de lazer se tocam formando uma ilusão de rascunho de desenho geométrico a lá Mondrian ainda não colorido (estou  ressignificando quase tudo no quarto mês de isolamento).

Visualizou o solo? Então, agora, levanta o olhar. No tédio insuportável da monotonia, convido você a contar o número de janelas que nos observam. Acima, já sabe: biruta, jardins suspensos, grades, antenas emolduram o céu azul.

A exceção mencionada anteriormente é composta por três elementos. Casas de uma vila com entrada ensanduichada entre dois prédios da Sá Ferreira e, no meio de seus telhados se lançam para o alto uma mangueira e outra árvore majestosa. Seus galhos e ramadas, pelas minhas contas, atingem até o oitavo andar, interferindo na paisagem de lego emoldurada pelas janelas dos apartamentos.

Não sei o efeito dessa informação para os leitores do restante do país, mas garanto que, para quem conhece Cuiabá e outras regiões de norte a sul, esse detalhe tem um significado especial. Com gosto, textura, aroma e lambança de fruta comida com a mão. Não sei você, mas sou adicta. Ter uma mangueira no raio visual sempre será um privilégio e uma forma ludicamente biológica de acompanhar o desenrolar do tempo.

Folhas novas, brotos, botões, florezinhas espevitadas amarelas, calor (chuva da manga em Cuiabá, já ouviu falar? Também tem a do caju...). Ouvir os uivos de agosto, mês do cachorro louco, derrubarem as mais frágeis. Calor, calor, vento e campana para ver os frutos crescerem e amadurarem. Tem que colher e, se possível, esperar ficar perpitola. Nunca chego lá. Gosto de frutas mais pra verde.

Já cheguei na colheita imaginária, mas a verdade é que nunca comi os frutos do pé de manga do quadrado. Pensando bem, acho que não costumo estar no Rio na época. Posso estar comendo manga em Mato Grosso, em Uruguaiana e até em Belém do Pará, a Mangueirosa, como me ensinou Ismaelino Pinto apresentando as maravilhas amazônicas.
Ano passado estava na fronteira do Paraguay com Mato Grosso do Sul. Beirando o Pantanal, flanando por Campo Grande e vendo a explosão dos Ipês Rosa.

Esse ano, a mangueira do quadrado emoldurada por sua amiga gigante é a salvação da pátria verde e amarela. Sua copa alimenta meus olhos, atiçando a imaginação.

Os movimentos dos seus galhos e o balanço das folhas ao vento acariciam, sem me tocar. Ao contrário dos moradores que, ao abrirem suas janelas, são abraçados pelo atrevimento da natureza, abusada.

Para mim, ela, essa mangueira que não é o Chapéu, minha comunidade, como dizia o grande Bola, nem a verde e rosa, só acena a distância fazendo pose de gostosa. E quer saber? Parece pouco, porém está de bom tamanho. Daqui a pouco vem o fruto e recomeça o ciclo...

*Valéria del Cueto é jornalista, fotógrafa e gestora de carnaval. Da série “Arpoador” do SEM FIM...  delcueto.wordpress.com

Studio na Colab55

9 de jul. de 2020

Biruta batuta, crônica de Valéria del Cueto

Biruta batuta

Texto e foto de Valéria del Cueto
Dessa vez começo pela foto que também é vídeo e ilustra essa crônica. É da biruta que habita uma cobertura da Souza Lima, em Copacabana, em meio a exuberantes folhagens ornamentais e ramos de palmeiras do jardim suspenso de algum morador felizardo.

Não tenho jardim suspenso, mas quem sou eu para desdenhar da minha laje no telhado? Ao lado do puxadinho (mais um de muitos) que protege as caixas d´água do prédio e seus canos de ferro do sol e de fios, cabos, antenas e parabólicas, não tenho do que reclamar.

Ou melhor, tenho sim (é a força do hábito) das coberturas de amianto que, criminosamente, com o passar do tempo, substituíram as telhas de barro da cobertura do edifício, pra começar.

Posso dar meu testemunho afetivo porque, antes da pandemia, há décadas atrás, a meninada do condomínio, na qual me incluía, costumava frequentar o telhado. Naquela época, inclusive, dava para viajar aqui por cima e dar a volta pelos tetos até chegar a Souza Lima, um quarteirão depois.

Agora é impossível já que, como diz o ditado “o que os olhos não veem a fiscalização não atinge". As partes superiores dos arranha-céus de Copacabana viraram emaranhados de objetos inúteis, caso de cabos, e antenas obsoletos, substituídos por equipamentos mais modernos sem o devido descarte dos antigos que vão ficando por ali num emaranhado confuso.

Nem assim estou reclamando, apenas constatando e avaliando o material disponível para os ensaios fotográficos e literários quando se trata de falar da realidade do entorno (com um certo ar de Mad Max pandemia de Covid-19)  sem direito a escapes como a imaginação ou temas visuais que nos transportem para outros mundos, de preferência mais delicados que o nosso.

Por isso a biruta é tão significante no universo real onde habito. Ela, que é um peixe, me dá o rumo e indica o prumo dos ventos. Me conta por que vias eles andam circulando lá no alto.

Quando a meteorologia anuncia ventos e tempestades é para ela que meus olhos se voltam tentando mensurar a intensidade da tormenta por cima do quadrado de prédios que, como guerreiros com sua barreira de escudos, protegem a área formada pelos pátios internos, solitários e egoístas de cada prédio.

O flanar do peixe biruta indica a intensidade e a direção da ventania.

As mais severas são aquelas que o rabo do peixe saracoteia para todos os lados, inflados pela boca que engole e engasga com o vento. Sem direção. Na dúvida entre a eira e a beira, dá umas paradas, como se descansasse de tanta agitação e precisasse respirar. Mas, logo em seguida, recomeça sua dança alucinada, para um lado, para o outro, no meio...

Em volta, as folhagens da cobertura fazem coreografias, contrastando com as rígidas barras brancas da grade que protegem os vasos do chacoalho.  Ás vezes suaves, outras vigorosas, tentam descabeladas acompanhar o peixe biruta guia.

Qualquer semelhança com a nossa biruta Covid-19 não é mera coincidência. É contraste.
O peixe/biruta está seguro, agarrado no mastro da ponta da varanda da cobertura. Já o vírus biruta, vagueia desgovernado, sem eira nem beira, distribuindo suas consequências nefastas e deixando seu rastro de morte por onde passa.

Pobre corona sem noção. De batuta não tem nada, biruta, segue flanando na inconsequência irresponsável que o impele e rasga o pais.


*Valéria del Cueto é jornalista, fotógrafa e gestora de carnaval. Da série “Arpoador” do SEM FIM...  delcueto.wordpress.com
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1 de jul. de 2020

Quem vem lá? - crônica de Valéria del Cueto

Quem vem lá?

Texto e foto de Valéria del Cueto
Hoje o assunto é a bicharada, mas não a da Flotropi. A que me cerca nesse isolamento da Covid-19. Bem aqui, na quebrada da Bulhões, quase Sá Ferreira, em Copacabana.

Depois de meses de reclusão tudo vira motivo de observação para um olhar treinado, porém acostumado as imensidões e horizontes vastos, como os das Pontas do Leme e do Arpoador.
Comecei procurando o céu pela janela do apartamento. Continuei ampliando a dimensão do voo das gaivotas e urubus que ficam rodeando o maciço do PPG (os morros do Pavão, Pavãozinho e o Cantagalo), ou cruzam de leste para oeste e vice-versa, dependendo dos bons ventos seguindo a orla carioca, na cobertura do prédio.

Pelo telhado também passam pombos, mas esses não circulam em bando, não têm um desenho de voo tão harmonioso e preferem voar mais baixo, procurando comida.

Fico pensando como estão se virando com menos gente nas ruas e, principalmente nas praias. Era lá que eles bicavam os resíduos deixados pelos “generosos” banhistas nas areias.

Também recebo a visita de um ou dois bem-te-vis. Sempre dão uma paradinha numa antena de TV de antigamente, encravada entre parabólicas de canais de HDTV.

Já consegui fotografa-los uma vez, mas costumo ser lenta no desenrolar da abertura da bolsa em busca da câmera. Foram muitas as vezes que os danadinhos me escaparam enquanto me enrolava nos zippers e cordéis da sacola de telhado, uma bolsa de praia com o conteúdo adaptado para as necessidades do banho de sol nas alturas.

Em casa costumo das bom dia a um bem-te-vi que passeia entre as floreiras das janelas. Ele saltita entre a azaleia e o pé de camélia cheio de botões que, sabe-se lá por que motivo, nunca desabrocham.
Aqui começa, justamente nele, meu exíguo contato com o mundo animal. Me dedico (sem muito sucesso) a diminuir o vai-e-vem de micro formigas que circulam e botam ovos nas folhas e brotos do pé de camélia.

Quando apertei o olhar descobri que os antúrios também andam nas mãos do exército de formigas! Minha estratégia será partir para uma pesquisa em busca do formigueiro central. Como não tenho fumo de rolo, estou lavando as folhas das plantinhas com água e sabão de coco, pra ver se espanto os batalhões.

Foi esse olhar microscópico que me fez localizar os caramujinhos e minhocas. Agora, nas plantas da área de serviço.

Essas tomam menos sol. O local é ideal para samambaias e outras espécies que preferem locais mais sombreados e protegidos do vento do mar que encana por entre os prédios.
A gente também recebe visitantes!

Outro dia, nos maços de verduras orgânicas que vieram do mercado, apareceu um mini grilo. Um filhotinho perdido. Deu até para gravar sua passagem aqui pelo quinto andar, bem verdinho e olhudo.
Partiu e, dias depois, me deixou outro “grilo”. Dessa vez na cabeça, com a notícia das nuvens de gafanhotos que passeiam pelo sul da América do Sul. Teria sido um aviso?

Bom, a última novidade foi o aparecimento de Joanita, a joaninha. Justamente no dia 25 de junho, dia de... São João, ela deu um giro pelas floreiras das janelas.

Se for um sinal, meu desejo mais profundo é que seja alvissaro. Estamos todos precisando de boas novas.

*Valéria del Cueto é jornalista, fotógrafa e gestora de carnaval. Da série “Arpoador” do SEM FIM...  delcueto.wordpress.com

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17 de jun. de 2020

Sem pena? É quarentena - crônica de Valéria del Cueto

Sem pena? É quarentena

Texto e foto de Valéria del Cueto
Meio de junho. O decreto de isolamento social foi na metade de março por aqui. Noventa dias sem, praticamente, botar os pés fora de casa. O local, um dos epicentros da Covid-19 no Rio de Janeiro, Copacabana.

No momento vivemos num efeito sanfona, com um abre e fecha desritmado. Os governos municipal, estadual e federal não se entendem. Nem o Judiciário.

Não deu uma semana entre a batida da Polícia Federal na vida do governador Wilson Witzel e ser dado andamento a um processo para seu impeachment por parte dos parlamentares da Assembleia Legislativa.

Em Mato Grosso a Covid-19 está se apresentando agora. A onda avança.

E eu aqui. Vendo a vida passar com minha mãe. Em muitos sentidos. E em várias dimensões. Explico...

Aprendi um truque sábio: encher o pensamento e as ações com tarefas de rotina. De preferência monótonas, mas que prendam a atenção e não deixem ficar dando voltas no problema existencial.
Pensei nessa vibe quando me dispus a atualizar o ‘No Rumo do Sem Fim”. Havia um gap de anos no material inicialmente publicado numa plataforma que foi extinta, o multiply, lembra? Pois é.

É o material das fotos, textos, vídeos e áudios que estou recuperando e organizando. Nesse momento viajo nas postagens de 2009, em pleno carnaval! Na busca das imagens correlatas que revejo meus afetos.

Daqui a pouco seguirei para as postagens de Uruguaiana, seu carnaval fora de época e a Estância São Lucas. Antes de seguir para Mato Grosso, logo depois. Foi lá que voltei a ficar agarrada numa curva do Rio Cuiabá durante um bom período nessa época.

Sim, amigos, existem mundos paralelos. Assunto de um grupo bem restrito de whatsapp dia desses. Acho que além dos que estão em estudo, cada um pode criar seu(s) próprio(s)mundo(s) paralelo(s).
Enquanto corrijo os links das postagens adiciono os players de áudio e vídeo e procuro as imagens indicadas nos códigos HTMLs, nos antigos arquivos, revisitando o material, deixo a TV ligada. Normalmente num filme que já assisti. E só paro a edição quando “aquela cena” vai acontecer.

Outra opção é abrir a playlist de vídeos do mar no canal @delcueto, no Youtube, e deixar as centenas de registos em looping. Também ouço lives enquanto (per)corro os HDs em busca das imagens perdidas.

O trabalho é maior porque como seguro morreu de velho, realinho no arquivo, posto no Sem Fim e, quando o assunto é carnaval, no acervo carnevalerio.com. Precisa de muita atenção. Tanto quanto na faxina do apartamento, acredite.

Ainda não troquei a noite pelo dia, como alguns amigos, mas durmo muito tarde. Até às 14h me organizo. Trabalho direto até às 17:30. Almoço e parto para dentro de novo, trocando os filmes pelo noticiário.  Esse, só uma vez ao dia, a não ser em casos excepcionais (o que não tem faltado ultimamente).

Não tendo onde caminhar tomo sol no telhado do prédio. Daqui também não vejo o mar. Meu visual é o PPG, sigla das favelas Pavão/Pavãozinho/(Canta)Galo. Graças a Deus tranquilas, ultimamente.
Das rádios da comunidade ouço as músicas que podem ser gospel, se for no fim de semana, funk ou um samba. Agora, ouço Serginho Meriti.

É dia bom. Feriado de Corpus Cristi. O visual é um contraste das coberturas endinheiradas da Sá Ferreira no plano mais próximo e dos barracos da comunidade ao fundo. Quando o assunto é música, a favela dá de dez no repertório se comparado com os das festas que já presenciei nas varandas de alguns apartamentos. Vida que segue...

Aí pergunto a você leitor, se posso viajar no espaço e no tempo em várias direções, por que cargas d´águas me limitaria a ficar só nessas pandemias, a do vírus e a da ignorância, que nos assolam nesse momento?

Abri as asas...


*Valéria del Cueto é jornalista, fotógrafa e gestora de carnaval. Da série “Arpoador” do SEM FIM...  delcueto.wordpress.com
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11 de jun. de 2020

Está pedreira na clareira - Fábula Fabulosa de Valéria del Cueto

Está pedreira na clareira

Texto e foto de Valéria del Cueto
Lembra da Flotropi, aquela que já foi governada por uma anta, um morcego vampiresco e, agora, está sob os auspícios do mico que pensa ser mito? A que anda fora do foco dos relatos pela dificuldade de explicar a bagunça institucionalizada que anda por aqui. Faz tempo que não há um momento de tranquilidade.

Nem no reino vegetal, nem no mineral. O que dirá no animal... A clareira central e toda a periferia andam um pandemônio. Os MIs estão fazendo uma tremenda agitação.

A bicharada baseada no mais primitivo instinto, o da sobrevivência, se entoca. Enquanto o mico mito, a família miquilenta, os ministros amestrados, incluindo uma penca de gorilas, os seguidores bovinos (coitados) e a miquilicia, insistem que não há motivo de alarme. Ordenando que a vida a caminho da morte premeditada seja retomada nor-mal-men-te.

Como se não bastasse a praga do vírus na floresta tem também a praga da desinformação sendo utilizada de forma maldosa e criminosa, segundo os códigos de sobrevivência na selva, para confundir e amedrontar os animais.

É claro que a maioria das espécies não segue o aboio. Afinal, nem todos os animais têm por instinto andarem no passo do flautista, emprenhados por marchas requentadas. A qualidade musical já derruba a possibilidade. Nem os ratos aguentam. Só surdos.

A pressão é grande e, diante da falta de um comando consciente e preocupado com o coletivo florestal, diversas espécies deixaram o mico esbravejando sozinho e foram cuidar de garantir a sobrevivência (a duras penas, escamas, couros e cascos) do equilíbrio ambiental. A sabedoria da mata ensina a recolher o flap durante as tempestades.

Fazer o que? Quando se conclui que a família é mais importante e que o mundo animal é o que menos importa para quem foi escolhido para cuidar da floresta inteira...

Não, não é tagarelice, papagaiada, nem leva e traz da pombarada. Os incrédulos habitantes da Flotropi foram surpreendidos pela íntegra da reunião do conselho na clareira central. Nela, as piores intenções do gabinete florestal foram expostas sem pudor.

Quem esperava uma ajuda pra tocar seus empreendimentos, caso das formigas e de espécies como as abelhas, por exemplo, já tirou o cavalinho da chuva. Ouviu da hiena financeira que o dindin é só para adimplentes. Na Flotropi castigada. A que amarga os prejuízos de crises e ataques sucessivos.

Foi no encontro dos “notáveis”, dito pelo encarregado da proteção do meio ambiente, que souberam que havia uma boiada passando pelo Diário Oficial da Flotropi. Só falta a cabra chifruda decretar o correntão como instrumento de utilidade pública!

Também teve a fala da araponga beata, a que viu o ser supremo passeando de cipó. Avisava que vai dar um “teje preso” nos líderes da fauna que agirem contra o contágio eminente, acredite!

 A araponga abriu MESMO o bico diante da hipótese de transformar a floresta num parque temático. Com direito a jogatina monetizada e vuco-vuco. À possibilidade da criação do parque ela não se alterou. Mas, diante da liberação do jogo, saiu dando bicadas na cabeça do predador do turismo.

Não terminam aí as surpresas desagradáveis do conselho. O javaporco do saber aproveitou a deixa pedindo a prisão da cúpula da Suprema Corte da Floresta e ainda declarou que, para ele, os bichos eram todos iguais! Da terra, do mar e do ar. Oi?

Pensa que os demais conselheiros se abalaram? Nem o mico, nem os gorilas. Ouviram com cara de paisagem as tolices e sandices proferidas no conselho florestal, entre guinchados esbravejantes pedindo proteção para os miquinhos trapalhões peraltas e outras ilações.

Tanto cutucou, incomodou e destratou o corvo da justiça que, para não distribuir bicadas e evitar perder a linha, esse chutou o poleiro e bateu asas, se retirando do encontro. Dias depois, ao cantar como uma cotovia, foi a ave que expôs as entranhas da reunião da maldade.

Claro que o mico e seu conselho macacal ainda estão dando as cartas. Mas, agora, além dos coiotes e hienas com o apoio de cobras e baratas para (des) governar. Aquelas que sobrevivem na face da terra desde os primórdios. Sem essa aliança não teriam mais forças para manter o território.

Por se saberem num mato sem cachorro, em que nem a onça está conseguindo ir beber água em paz, os animais passaram a se organizar por conta própria garantindo, na medida do possível, a sobrevivência das espécies.

70 por cento dos habitantes já entenderam que a Flotropi não pode ficar à mercê de guincharia e macaquices enquanto seu patrimônio ambiental, sua maior riqueza, é dilapidado e depredado.

Mas, e aí? Está pedreira na clareira...

*Valéria del Cueto é jornalista, fotógrafa e gestora de carnaval. Da série “Fábulas Fabulosas”, do SEM   FIM…  delcueto.wordpress.com

Studio na Colab55

27 de mai. de 2020

Quer comprar? por Valéria del Cueto

Quer comprar?

Texto, fotos e vídeos de Valéria del Cueto

Dobrou a esquina procurando espaço aberto em direção à praia. Mas não chegou a atravessar as pistas. Justo naquela rua não havia sinal nem faixa de pedestres que permitisse a passagem segura para a orla.

Pegou o calçadão caminhando no desenho das pedras portuguesas, um dos patrimônios paisagísticos de Burle Marx na cidade maravilhosa, cartão postal do Rio de Janeiro.

Naquele trecho não havia bancos para descansar contemplando a vista, somente as árvores que se esparramavam em desenhos inesperados correndo atrás da luz do sol, derramadas sobre a calçada.

Era um dia que ficou azul. Começou cinzento. O vento afastou a bruma e mudou o humor das nuvens, reverberando o contraste do caminho. De um lado a natureza, céu, mar, areia, praia. Do outro, concreto e a mão do homem, no trabalho maravilhoso do paisagista sob os pés da muralha de prédios da Avenida Atlântica, em Copacabana.

Carros estacionados, ao longe moradores. Os de rua perambulando, os dos prédios passeando seus cachorros, turistas... tudo igual naquela quarta-feira, início de março.

O olhar que vagava na mesmice do verão pós carnaval foi atraído por um conjunto de elementos incomuns na paisagem. Vários elementos.

Ter caçambas recolhendo material das obras em apartamentos da orla não era incomum. Cercada de catadores que nos containers garimpavam tesouros, inclusive. Mas aquela espécie de burro sem brabo malocado no emaranhado de troncos distorcidos entre um grupo de árvores era incomum.

No carrinho de ferro uma pilha de pedaços de corpos rígidos, brancos e cores da pele. Pernas, braços troncos e nádegas amontoadas. Tudo, menos as cabeças. O brilho da superfície fria dos manequins contrastando com o formato orgânico, caótico dos troncos e o corte irregular das pedras portuguesas.
Enquanto explorava os objetos, rodeando a “instalação”, uma imagem delirante de sobrepõe. Os corpos passaram a serem reais, ali amontoados!

Buscou avidamente alguém no entorno. Procurava explicação para o conjunto ali exposto. Não viu ninguém. É como se o mundo tivesse parado, esvaziado.

Para se convencer de que a visão dos corpos reais era apenas ilusória, talvez efeito do vinho consumido no almoço na Trattoria, ali atrás, racionalizou. Raciocinando, não podia ser real o seu delírio porque faltava sangue! Duas piscadas depois os corpos desnudos voltaram a ser apenas bonecos inanimados. Sem cabeças.

Mais uma vez deixou o olhar vagar procurando quem explicasse os adereços surreais naquele lugar.


Uma mulher se aproximou observando a pilha de corpos imóveis inquirindo. “Serão de quem?” perguntou, observando os corpos em vários ângulos antes de explicar. “Se tivessem cabeça até me interessava”.

“Quer comprar?” A voz vinha do nada. Tirando o cachorro que arrastava o dono que dobrava a esquina ao longe não havia viva alma no calçadão. Depois de hesitar, a mulher conversou com o vazio perguntando a origem dos corpos mutilados. “Preciso de cabeças, por acaso não tinha por lá?”
Do alto dos galhos das árvores a resposta veio ligeira. “A Gente pegou o que tinha. Era tudo isso aí. Que comprar? “Só queria as cabeças”, respondeu a interessada. Como não tinha, seguiu solitária pelo calçadão enquanto o observador silencioso rodeava o grupo das árvores em busca de ângulos inusitados dos objetos em cima do burro sem rabo.

Da galharia novamente a oferta. Dessa vez para o dono do cachorro que veio chegando. Puxava o “chefe” pela coleira. Se aproximou para farejar as rodas do carrinho. Não foi só a ele que a visão causou uma sensação estranha.

Como sabia o texto do diálogo que aconteceria e já esgotara as possibilidades fotográficas, seguiu o seu caminho em direção ao posto 6.

Carregado pela nuvem etílica que o embalava, esqueceu o material capturado e do estranho diálogo. Perdido num sonho delirante, uma miragem ilusória do último passeio antes do início do afastamento compulsório definido pelo vírus.

Duas ou três luas de isolamento provocado pelo flagelo da Covid-19, remexendo nos arquivos ressurgiram as imagens. Uma premonição visual do que acontecia na vida real.
Foi aí que veio à memória a pergunta que não deveria calar, o enunciado do enigma que desafiava a humanidade.

“Quer comprar?”


Clique aqui oou na foto para acessar a sequência de fotos que inspirou o texto no Flickr

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*Valéria del Cueto é jornalista, fotógrafa e gestora de carnaval. Da série “Arpoador”, do SEM   FIM…  delcueto.wordpress.com


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