Mostre-me um exemplo TRIBUNA DE URUGUAIANA: junho 2023

27 de jun. de 2023

Longe perto - crônica de Valéria del Cueto


Longe perto

Texto e foto de Valéria del Cueto

Como pode ser difícil o que parece fácil.

O único pedido era por uma parada estratégica na praia de segunda. Feira, o dia da semana. O local, como sempre, é de primeira.

A intenção de lagartear na abertura do inverno carioca se justifica pelo dia clássico de céu de brigadeiro e um calor incomum de fim de junho. Fui.

“Só pode morar na favela”, observa o vendedor ambulante, desviando minha atenção do caderninho e da escrevinhação, motivo mais que justo para a parada solitária nas areias de Ipanema.

“...pra estar correndo atrás de pombo, só pode ser da favela”, especifica o precursor das areias enquanto a revoada passa e os pássaros riscam o azul anil do firmamento. Nota 5, e olhe lá, no quesito dedução.

Acontece que quem provoca rebuliço é “Joêi”, uma bola de pelo branquinho que veio marcar território assim que estendi a canga, já no meio da tarde, debaixo do paredão da mureta, pros lados da entrada do Arpoador.

“Vem cá Joêi”, chama a dona do cachorrinho quando ele se aproximou enquanto, disposta a cumprir minha missão, abria a bolsa e tirava meus instrumentos, o papel e a caneta, sem dar trela. Por isso sabia o nome do chow chow espevitado.

Olhei em direção ao vendedor que, junto comigo, apreciava a farra do animalzinho atrevido se criando na direção da pombarada fazendo alvoroço.

Ao sentir que o observavam, o casal e eu, emendou: “Ih, esse não é da favela, está limpo demais, branquinho desse jeito”, recebendo um sorriso complacente da dona de Joêi.

“É, mas pensando bem, que cachorro resistiria a essa chance?”, desenrola filosofando o ambulante apresentando seu produto ao casal com a “criança” no colo, formando o quadro da foto (que não vou tirar, vai ficar no texto descritivo). Registro pronto pra posteridade. A moça havia colocado óculos escuros no cachorro!

Sem abertura ao diálogo que permitiria uma oferta de seu produto o vendedor se satisfaz com o sorriso orgulhoso dos pais do bichinho e segue fazendo seu aboio pela areia quase vazia.

Fico eu, tentando lembrar qual era mesmo o fio que ia desenrolar pra esse texto e ainda pensando no que no que ouvi: “só pode ser da favela” e como o preconceito se apresenta de forma tão natural, inconsciente até, por quem sofre com ele.

Acho que sou que nem o animal que não (re)conhece seu lugar. Não posso ver um movimento que quero fazer marola. De vez em quando sou bem recebida. Outras vezes, como fiz com Joêi, sou ignorada. Também tem horas que consigo enfeitar o céu, desenhar no o azul bordando feliz a paisagem da vizinhança literária.

Sinto que estou desenrolando bem por aqui!

Especialmente para quem quase não conseguiu chegar ao paraíso. Foi um longo percurso que passou pelo purgatório de tentar dialogar com a ouvidoria da Claro.

A cia telefônica dedicou a vários amigos que, sabendo que não uso whatsapp, tentaram contato no dia do meu aniversário a singela mensagem que dizia: “Esse celular está programado para não receber chamadas”.

Foram horas pra explicar que que não havia ligado no dia porque não havia a menor possibilidade de me dedicar a esse processo kafkaniano e masoquista justamente quando tudo que queria era comemorar a vida!

Foi depois de desenrolar essa demanda, na primeira segunda-feira de desaniversário e de inverno, que me joguei aqui no longe perto de Ipanema pra dar um alô ao Joêi, meu novo amigo despreconceituoso, perseguidor de pombos indefesos e me reconectar a você, leitor.

Bom inverno!     

*Valéria del Cueto é jornalista e fotógrafa. Essa crônica faz parte da série “Arpoador”, do SEM FIM...  delcueto.wordpress.com



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5 de jun. de 2023

De onde sou cria - crônica de Valéria del Cueto


De onde sou cria

Texto e fotos de Valéria del Cueto

Vim pelo caminho escrevendo o texto em pensamento enquanto observava os desenhos dos raios de sol de outono entre as árvores enormes do trajeto até a Ponta do Arpoador. Queria ver o nascer da lua cheia de junho da Praia do Diabo, à direita do continente, para os lados do litoral norte. O plano estava feito. Como sempre, para variar, algo mudou o rumo da escrita.

Acontece que estou impregnada do meu amor primeiro, apesar de traído várias vezes, o Leme. É a ele que o olhar se volta assim que chego perto da guarita da pedra, na divisa do Forte de Copacabana. Uma mureta e um aramado impedem a passagem guardada por um soldado vigilante. Pergunto se sabe onde nascerá a lua. Diz que não com cara de quem não entende muito de coisas de lua. Natural, espacial nem exotérica. Aviso que é muito sortudo apesar do friozinho. Do ponto em que está de sentinela verá um lindo anoitecer.

A lua subirá cedo, às 17:42. Enquanto escrevo ergo o olhar e observo o céu azul sem nuvens. Só com a barra de poluição sendo colorizada em tons rosados no lusco-fusco. Observo a quantidade de pinguins, os turistas, que esperam o sol cair para aplaudi-lo em Ipanema. Que contraluz. Tudo lindo!

Acho que expandi a sensibilidade visual ontem no Leme.  Fazia tempo que não ia ao meu paraíso perdido. Achava que seria uma passagem rápida só pra acarinhar, como sempre, a Pedra do Leme do Caminho dos Pescadores. O tempo andou manhoso, birrento, cheio de crises de choro. O mar pesadão sempre em tons de chumbo refletindo o céu cinzento e nublado que trazia as chuvaradas. Não esperava nada do passeio, só que...

Quando cheguei na subida do Caminho dos Pescadores, já na estátua de Clarice Lispector e seu cachorro sentada na mureta, vi que o passeio ia dar liga. A primeira imagem pulou da câmera quando um outro cão se chegou na poetisa enquanto seu dono estava sentado ao lado. O fundo era aquele visual de Copacabana inteira. Cortei o dono (que me perdoe) e esperei um tempo até o Totó olhar para os mistérios de Clarice.

Continuei para o Caminho em busca do ponto em que entre pichações, grafites variados e, hoje, uma bike camuflada. Me agarro nela, a pedra, para saudá-la. Imagine a cena, caro eleitor. De costas à beleza estonteante, mãos e corpo grudados ao monólito como uma lagartixa, conversando com os meus e os visitantes passando de um lado pro outro. O ritual não é demorado. É o tempo uma saudação, um Pai Nosso, aquecer a alma e deixá-la ser embalada pelo som das ondas e marolas do vai-e-vem do mar no costão do Leme. Estou em casa.



Depois de impregnada da força da pedra é só fazer um giro de 180 graus e abrir, aí sim, a visão para a força estonteante do cenário que se descortina de lá. Imagino caravelas em tempos antigos acompanhando o deslizar de um veleiro.

Pode ser que essa beleza não provoque nenhum efeito em outras pessoas. Em mim é um sopro de vida, numa ressuscitação boca-a-boca. Audição e visão expandidas à grandiosidade da paisagem. Minha reação é baixar os olhos para o local que produz o som inconstante que hipnotiza e, achava, estaria turvo, agitado. Aí, vem o que fez mudar o rumo do registro aqui no caderninho. O primeiro ponto é a cor da água. O segundo, sua limpidez azul esverdeada. Está bom? No sobe e desce da maré da lua cheia (olha ela) deu para sentir a sedução?

Enquanto me entregava ao ritmo calmo do mar, vi a dupla passeando. Duas tartarugas brincavam no play aquático natural do costão entre cardumes. O tempo parou para nadar com eles e eu engatei nas imagens. Ô sina. Sabe aquele compromisso? Perdi a hora.

E agora, para finalizar porque o espaço está acabando, vou ali correndo! Se escrever mais as “tugas” (estou íntima) também me fazem perder a lua cheia do mês de junho que está nascendo. Onde? Para o lado de onde sou cria. Do Leme...

#saiodoLememasoLemenaosaidemim

*Valéria del Cueto é jornalista e fotógrafa. Texto  das séries “Arpoador e Ponta do Leme” do SEM FIM... delcueto.wordpress.com

 


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